segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Sobre o ser e o ver

É MESMO?

Não é interessante
que alguém goste de poesia
e de luta ao mesmo tempo?

Não é contraditório
que alguém acredite em Deus
e, por vezes, se desespere?

Não é meio ridículo
pesar mais de cem quilos
e não se enxergar gordo?

Não parece bem bobo
conhecer os dramas do mundo
e fazer piada de alguns deles?

Não é exagerado
derramar umas tantas lágrimas
porque o filho dormiu no seu colo?

Não é patético
amar muito, muito mesmo
e brigar por tão pouco?

Não soa meio dramático
tanto querer, tanto desejo, tanto me dá,
duas décadas depois da adolescência?

Não é muito irônico
que a substância, que é só por ser,
sofra as qualificações de quem a vê?





TABACARIA

            Fernando Pessoa


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do
            Mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que
            ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada
            constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa,
            desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos
seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos
            brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela
estrada do nada.
Estou hoje vencido como se soubesse a verdade.
(...)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Olhando pra trás, olhando pra frente.

LINHA DE CHEGADA

Ao completar a jornada
tinha tanto pra ver
das dores do caminho
das pedras de tropeço
das placas que indicaram
meus acertos e meus erros.
E eu nem de longe acertei
na maioria das escolhas
das indicações que vi.
Segui alternando crenças
e fabricando motivos,
mais inventei que vivi.

Ao completar a jornada
custei a crer que o ainda
tinha se tornado afinal.
Incredulidade a parte,
foi desse jeito que foi
não foi de outro jeito que fim.
Amanhã um novo início
de dores e de alegrias,
as jornadas são assim.
Parto só porque preciso,
já não careço de crenças,
nem mesmo da crença em mim.



ANDAR COM FÉ

                        Gilberto Gil

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá.

Que a fé tá na mulher
A fé tá na cobra coral
Oh! Oh!
Num pedaço de pão...

A fé tá na maré
Na lâmina de um punhal
Oh! Oh!
Na luz, na escuridão...
Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá
Olêlê!
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Olálá!

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Oh Minina!
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faia.

A fé tá na manhã
A fé tá no anoitecer
Oh! Oh!
No calor do verão...

A fé tá viva e sã
A fé também tá prá morrer
Oh! Oh!
Triste na solidão...

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Oh Minina!
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá...

Certo ou errado até
A fé vai onde quer que eu vá
Oh! Oh!
A pé ou de avião...

Mesmo a quem não tem fé
A fé costuma acompanhar
Oh! Oh!
Pelo sim, pelo não...

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Olêlê!
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Olálá!...
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá...
Olêlê, vamos lá!

domingo, 14 de agosto de 2011

As Cores da Vida

PALETA DE CORES

 
O vermelho das gengivas
às vezes tingidas de azul,
pela doçura oculta da amora,
às vezes pelo amarelo-manga
colhido no galho mais alto,
ou pelo rosa das goiabas
furtadas ao vizinho bravo –
Porque frutas gostosas
só dão em quintal de gente brava? -
o marrom dos tamarindos catados
e entre caretas devorados,
o verde do abacate comido
com açúcar e farinha,
entre goles de café bem doce.
Como são doces as cores da infância.

O cinza dos paralelepípedos acolhia
o amarelo que o outono emprestou
às folhas da amendoeira, que
saudosas do seu tom sobre tom de verde
atiravam-se desgostosas
no ar transparente.
Empilhadas em montanhas vermelhas
passavam pelo fogo alaranjado
e iam descolorir o céu azul
em pequenos flocos de cinza que
cedo ou tarde tisnavam
a roupa que estava quarando
nos fazendo rir escondidos
dos palavrões que as mães soltavam.

No mesmo subúrbio
em que contemplei essas cores,
vejo outras serem impostas
a despeito de sua harmonia.

O verde que deveria ser do arvoredo
que a necessidade expulsou do morro
deixando no lugar capim
e o vermelho do barranco,
ferida aberta na carne bege
da pedra antiga.
Quando o branco da nuvem esbarra
em seu cume amarelado, é porque o negro
vai tomar o céu e turvar a vista
com a chuva forte
que tudo deixa translúcido,
menos o morro, onde o sangue do barranco,
empurrará morro abaixo
o marrom da enxurrada
produzindo um quadro surreal,
não fosse real o mosaico
de perdas brotando da lama,
tão colorido quanto intolerável
embora siga-se tolerando –
Porque as piores tragédias
acontecem na vida de gente pacata? –
ainda que ninguém suporte ver
o amarelo do cabelo da boneca
o vermelho do cabelo da menina,
em tão grotesca obra
que nunca encontra quem se declare seu autor.

O pé preto do menino magrelo,
que foi atrás da pedra branca,
que tudo deixa opaco,
mas encontrou o marrom do cassetete,
o vermelho do supercílio aberto,
e o prata da algema apertada
pelo sujeito vestido de bege
que nem queria estar ali
com o  olho roxo de uma pedrada,
mas não pode dizer não,
ao homem de terno azul,
e gravata vermelha discreta,
que a televisão disse que era
paladino da ordem e da paz-
Porque as piores mentiras
repercutem como verdades tão óbvias? -
embora o roxo e o vermelho,
do olho inchado do sujeito
e do supercílio aberto do menino
digam exatamente o contrário.

O verde,
O azul,
O violeta,
O vermelho,
O amarelo,
O marrom
e o azul do dinheiro
que empurra casas pra lá,
vidas, sabe-se lá pra onde,
traz estádios e viadutos,
reforça o preto do asfalto
e o cinza do concreto,
e expulsa violentamente
o verde daquele bichinho
que guri eu tinha medo
mas me alegrava saber
que ele estava por perto:
a Esperança
que há muito não vejo
em seu vôo meio torto
passeando por aqui
suas antenas sensíveis.

Se ela volta eu não sei,
mas faz falta -
ô, se faz!


Morte do Leiteiro
            Carlos Drumonnd de Andrade

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? Se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

No dia em que você nasceu

HELDER

No dia em você nasceu -
Dia Ensolarado -
o céu ficou claro em minha vida
e parecia que jamais ia nublar.

Mas ninguém avisou às nuvens
e elas, desinformadas,
deram de esconder o sol.

Elas não sabiam que você –
Céu claro -
sol de poucos dias,
mas de tanta luz
em tantas vidas,
não deixaria ninguém atentar
a essa ironia do tempo.

Foi assim que você veio –
Helder - 
que na Holanda foi nome de Forte,
no Recife foi nome de Santo,
e aqui, no subúrbio do Rio,
é o novo nome da vida e do amor.

No dia em que você nasceu,
o céu das nossas vidas ficou claro,
pra nunca mais nublar.