domingo, 14 de agosto de 2011

As Cores da Vida

PALETA DE CORES

 
O vermelho das gengivas
às vezes tingidas de azul,
pela doçura oculta da amora,
às vezes pelo amarelo-manga
colhido no galho mais alto,
ou pelo rosa das goiabas
furtadas ao vizinho bravo –
Porque frutas gostosas
só dão em quintal de gente brava? -
o marrom dos tamarindos catados
e entre caretas devorados,
o verde do abacate comido
com açúcar e farinha,
entre goles de café bem doce.
Como são doces as cores da infância.

O cinza dos paralelepípedos acolhia
o amarelo que o outono emprestou
às folhas da amendoeira, que
saudosas do seu tom sobre tom de verde
atiravam-se desgostosas
no ar transparente.
Empilhadas em montanhas vermelhas
passavam pelo fogo alaranjado
e iam descolorir o céu azul
em pequenos flocos de cinza que
cedo ou tarde tisnavam
a roupa que estava quarando
nos fazendo rir escondidos
dos palavrões que as mães soltavam.

No mesmo subúrbio
em que contemplei essas cores,
vejo outras serem impostas
a despeito de sua harmonia.

O verde que deveria ser do arvoredo
que a necessidade expulsou do morro
deixando no lugar capim
e o vermelho do barranco,
ferida aberta na carne bege
da pedra antiga.
Quando o branco da nuvem esbarra
em seu cume amarelado, é porque o negro
vai tomar o céu e turvar a vista
com a chuva forte
que tudo deixa translúcido,
menos o morro, onde o sangue do barranco,
empurrará morro abaixo
o marrom da enxurrada
produzindo um quadro surreal,
não fosse real o mosaico
de perdas brotando da lama,
tão colorido quanto intolerável
embora siga-se tolerando –
Porque as piores tragédias
acontecem na vida de gente pacata? –
ainda que ninguém suporte ver
o amarelo do cabelo da boneca
o vermelho do cabelo da menina,
em tão grotesca obra
que nunca encontra quem se declare seu autor.

O pé preto do menino magrelo,
que foi atrás da pedra branca,
que tudo deixa opaco,
mas encontrou o marrom do cassetete,
o vermelho do supercílio aberto,
e o prata da algema apertada
pelo sujeito vestido de bege
que nem queria estar ali
com o  olho roxo de uma pedrada,
mas não pode dizer não,
ao homem de terno azul,
e gravata vermelha discreta,
que a televisão disse que era
paladino da ordem e da paz-
Porque as piores mentiras
repercutem como verdades tão óbvias? -
embora o roxo e o vermelho,
do olho inchado do sujeito
e do supercílio aberto do menino
digam exatamente o contrário.

O verde,
O azul,
O violeta,
O vermelho,
O amarelo,
O marrom
e o azul do dinheiro
que empurra casas pra lá,
vidas, sabe-se lá pra onde,
traz estádios e viadutos,
reforça o preto do asfalto
e o cinza do concreto,
e expulsa violentamente
o verde daquele bichinho
que guri eu tinha medo
mas me alegrava saber
que ele estava por perto:
a Esperança
que há muito não vejo
em seu vôo meio torto
passeando por aqui
suas antenas sensíveis.

Se ela volta eu não sei,
mas faz falta -
ô, se faz!


Morte do Leiteiro
            Carlos Drumonnd de Andrade

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? Se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

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